domingo, 16 de novembro de 2008

Gerações

Era algo constante nas manhãs de terça-feira o seu bichinho de pelúcia preferido acordá-la num processo de quase estrangulamento. Sempre despertava a tempo de tirar as patas do bicho do seu pescoço e trancá-lo dentro do armário junto com seus outros bichinhos de que gostava menos. Uma hora depois, quando ele já tinha se acalmado, ela o tirava com esforço de lá e o punha novamente em cima de sua cama. Nunca conseguiu entender qual era a desse bichinho, mas com ele aprendera a respeitar as diversas formas de vida e de temperamento, então tudo bem, ela compreendia a importância.

Se ela via televisão com ele principalmente nas quintas-feiras, ele logo dormia. Talvez fosse justamente na quinta que ele tivesse os sonhos mais perturbados e por isso precisasse dormir mais durante o dia. Era só uma suposição na cabeça dela, já que por mais que tentasse não conseguia saber o que aquele olhar queria tanto dizer. Pensava em inventar um tradutor, um decodificador, um neutralizador, um liquidificador e outras coisas que só uma criança com um bichinho de pelúcia é capaz de pensar.

Certo dia ganhou uma bicicleta. Achou mais divertido que o bichinho de pelúcia e o guardou para sempre junto com os outros de que gostava menos. A bicicleta era o sinônimo de sua liberdade infantil, sua conquista secreta do mundo e das coisas. A bicicleta vermelha não era muito de conversar, mas às vezes percebia que ela tentava puxar assunto e então conversavam sobre a qualidade do asfalto, das lajotas, do barro e da dificuldade de andar na grama. Os assuntos da bicicleta eram só esses. Talvez nunca tivesse olhado para o céu, visto um passarinho ou um relâmpago. Talvez não tivesse nem pegado chuva.

Mais ou menos um ano depois ganhou um computador. Depois disso não conseguiu mais entender como algum dia pudera gostar de um bichinho de pelúcia estrangulador ou de uma bicicleta vermelha entediada. Com a internet ela podia conversar com todos os bichinhos de pelúcia e bicicletas do mundo, não havia limites, podia até ser criança pra sempre se quisesse. Então passou anos fixada nesse outro mundo, compenetrada, maravilhada, desencantada, feliz, triste, excitada, tudo podia acontecer agora. E ainda por cima ao mesmo tempo porque ela aprendeu a fazer muitas coisas juntas. Com o tempo, essa falta de definição fez com que esquecesse os dias da semana. Não se lembrava mais das manhãs de terça-feira ou dos domingos chuvosos. Não fazia diferença porque no computador era sempre o dia, o tempo, o clima que ela quisesse.

Foi basicamente isso que aconteceu. O bichinho e a bicicleta foram doados nessas campanhas do brinquedo, o bichinho deve ter descontado sua ira e estrangulado outras crianças, a bicicleta talvez tenha tido tempo de olhar para o céu e ter tido uma vida um pouco mais poética, enquanto a menina estrangulava e entediava a si mesma à medida que não percebia a passagem do tempo, da vida, do ciclo todo.

Talvez tenha morrido em frente ao computador. Ou tenha conhecido alguém na internet e tido filhos de verdade ou virtuais mesmo. Talvez tenha até ido ao enterro de sua avó por e-mail e comido os biscoitinhos do velório por transferência de arquivo. Não se sabe.

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