segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Picasso e os tempos

Pablo Picasso e Georges Braque são considerados os fundadores do movimento cubista. Curiosamente, desse movimento, os dois foram praticamente os únicos artistas que, na época, não procuraram explicar o cubismo - ambos não fizeram declarações escritas nos anos anteriores à guerra. Sendo assim, as poucas declarações de Picasso que tiveram início em 1923 estão distanciadas temporalmente daquele 1907, ano de Les Demoiselles d’Avignon, que marcaria o início do cubismo. Os textos de Picasso não dizem respeito a processos de obras específicas, são antes considerações sobre a relação entre sua vida e a arte, reflexões sobre as formas, o cubismo, a crítica, a recepção.

Para Picasso, o pecado mais falso que foi acusado de cometer é o do espírito da pesquisa. Muitos textos sobre Picasso (e sobre o cubismo) fazem referência à pesquisa: o crítico André Salmon em 1912, a respeito de Les Demoiselles d’Avignon, afirma que o quadro é a primeira aplicação das pesquisas de Picasso, que levaram longos dias e muitas noites, desenhando e concretizando o abstrato e reduzindo o concreto ao essencial (aqui a arte dos negros já fascinara Picasso e o influenciara pelo valor de deformação estética, diferente do tradicional). Em 1915, Daniel-Henry Kahnweiler define Picasso como um pesquisador fanático e traça uma trajetória temporal dessas pesquisas que teriam provado para o pintor que a forma fechada não propiciava um meio de expressão que atendesse adequadamente seus anseios. No entanto, Picasso é categórico em sua declaração: quando pinta, seu objetivo é mostrar o que encontrou e não o que está procurando. “Se em seu trabalho ele [o artista] se limitasse a mostrar que pesquisou, e pesquisou novamente, a maneira de apresentar mentiras, jamais realizaria alguma coisa”.

Partindo dessas contradições, é possível compor meios para pensar sobre as declarações de Picasso e sua obra. Primeiramente, quais foram as necessidades desse artista que o levaram a propor uma nova maneira de percepção? Essa busca é uma pesquisa ou, como Picasso afirma, essa busca não é pesquisa nem transição, mas um desejo de exprimir o que estava nele? Picasso também não considera seus diversos métodos empregados em sua arte como “evolução ou como passos na direção de um ideal desconhecido da pintura”. Tudo o que fez, segundo ele, fez para o presente e com a esperança de que continue no presente. Picasso expressa-se em cada pintura de tal modo a considerá-la acabada, pronta para um presente eterno? Também não. Um quadro terminado significa a morte: “acabar com ele, matá-lo, livrar-se de sua alma, dar-lhe o golpe final: uma situação extremamente infeliz, tanto para o pintor como para o quadro”. Sendo assim, como pensar essas obras, sempre no presente, com a fragmentação do olhar por meios da redescoberta de formas que sugerem novas percepções e múltiplas perspectivas em coalescência?

Não é no intuito de compreender que me lanço às perguntas. Picasso mesmo não via sentido no fato de todos quererem compreender a pintura: “Se ao menos compreendessem que o artista trabalha por necessidade, que ele próprio é um ínfimo elemento do mundo, a quem não se deveria atribuir mais importância que a tantas coisas da natureza que nos encantam, mas que não explicamos”. E realmente não é a compreensão ou a explicação que a pintura cubista intui. Mas a estimulação do olhar por meio de formas e objetos, causando uma profundidade que disseca o objeto, o espaço, o ser humano por todos os lados e entranhas e ao mesmo tempo. Essa necessidade de criar formas que constroem uma multiplicidade de estratos é o que conecta Picasso ao tempo. Vai além do presente para o qual ele diz fazer suas obras: ao relacionar o objeto com a percepção e criar no mesmo plano diversos pontos de vista, esses objetos contemplam a noção de temporalidade de Bergson, que propõe a experimentação do tempo em fluxos contínuos - esses fluxos não são apenas sucessões e mudanças, mas permanências no que sucede e transcorre. Para transmitir tanto a noção de duração, quanto a nova percepção colocada pelo cubismo, é preciso considerar as modalidades de tempo – passado, presente e futuro – não cronológica e uniformemente ordenadas, e sim como uma rede que torna os tempos indissociáveis e mesclados uns aos outros. A pintura de Picasso pode estar sempre no presente porque o passado não deixa de ser também presente, como a metáfora do rio no qual entramos e não entramos, estamos e não estamos. A pintura de Picasso pode estar sempre no presente porque torna contínua e simultânea a consciência e a memória. Seria a representação do tempo em fluxo contínuo a necessidade de Picasso, ao desassociar o olhar da “realidade visual” e o introduzir na plasticidade por si só?



1910 é o ano de Garota com Bandolim (Jeune Fille à la Mandoline). Esse ano é marcado na pintura de Picasso pelo rompimento com a forma fechada – “uma nova ferramenta havia sido forjada para servir a uma nova realidade”, escrevera Kahnweiler. A nova realidade não detinha os objetos e os rostos nas suas superfícies, mas permitia que fossem tangíveis à medida que as percepções visuais misturavam-se às percepções táteis conservadas na memória. A revelação das formas (nas partes do corpo, no bandolim, no fundo) incita a amplitude na contemplação, manifestando uma penetração do olhar que não era possível na imitação ilusionista. É por meio desse mecanismo que o tempo se instala, é na ousadia em multiplicar formas e temporalidades que Picasso representa seus instantes eternos.

Ainda sobre lançar-se à compreensão, Picasso escreveu: “Os que tentam explicar um quadro estão quase sempre no mau caminho. Gertrude Stein anunciava-me jubilosamente, há algum tempo, que finalmente compreendera o que representava o meu quadro dos três músicos. Era uma natureza-morta!”. Como seria uma natureza-morta, se, com o uso instável das formas, dá-se justamente o contrário? Era 1910 quando Jean Metzinger escreveu que Picasso “inventou uma perspectiva livre e móvel” e que “a forma, usada durante tantos séculos como o apoio inanimado da cor, recupera finalmente o seu direito à vida e à instabilidade”. É justamente sob a presença da vida que Picasso mantém os olhos – e propõe-se agir com a pintura, exatamente como na vida: “Faço uma janela como olho através de uma janela. Se essa janela aberta não fica bem no meu quadro, puxo uma cortina e a fecho como o teria feito no meu quarto”. Assim, a produção de Picasso segue a mobilidade do pensamento – que o permite, fora da lei acadêmica e do modelo anatômico, criar a liberdade imprevista dos movimentos. Além disso, “depois de terminado ele continua a mudar, conforme o estado daquele que o contempla. Um quadro vive sua vida como um ser vivo, sofre as mudanças que a vida cotidiana nos impõe. Isto é natural, já que um quadro só vive graças àquele que o contempla”.



Picasso apenas escreveu sobre seu modo de pintar de maneira geral, explicitando certos anseios, idéias sobre a arte, mas não especificamente sobre suas fases e transformações – afirma simplesmente que coloca nos seus quadros tudo o que ama: “Tanto pior para as coisas; tudo o que elas têm a fazer é arranjar-se entre si”. Desse modo, embora não possa aplicar efetivamente um contraponto entre as proposições do artista e a maneira pela qual essas proposições foram materializadas, fica claro o estímulo das obras de Picasso para lançar-nos a novas sensibilidades, construindo olhares capazes de reconhecer justamente na diferença com o “mundo visual”, as “verdades” do artista, a pluralidade de faces das coisas, dos objetos, dos espaços, dos rostos e até do tempo: propunha uma pintura não só com partes objetivamente visíveis, mas também com a interação da consciência... Num fluxo contínuo de criação, representação e recepção inextrincável que se modifica e se renova como o rio, como a vida.

Um comentário:

Unknown disse...

E quanto tempo para escrever.. Quem diria que você também é arte e cultura hahaha!

Minha irmã conseguiu transferência para a Universidade em Praga (e agora vai cursar cinema!).

Adivinha em quem pensei, né?

muchos besos