domingo, 29 de junho de 2008

A Ruiva

Costumava ser gordinha quando criança. Ruiva, gordinha e tagarela. Depois cresceu, continuou ruiva, mas emagreceu e se fechou como uma ostra. Sempre morou com a mãe, nunca ouviu falar do pai. Tornou-se tímida quando se apaixonou pela primeira vez, aos 11 anos. Percebeu que as coisas eram mais complexas e inapreensíveis do que a perspectiva plana que até então apreendia na sua vida.

Aos 15 começou a trabalhar. As notas na escola caíram, mas precisava ajudar sua mãe que não dava conta de sustentar a casa e seus pequenos luxos adquiridos de tanto ver novela. Rúbia não ligava para as cores da moda, os novos penteados ou a programação na tevê. Na verdade não se interessava por muitas coisas e embora já tivesse 24 anos, ainda não sentira o palpitamento da vida, algo que pudesse fazê-la transbordar de vontade de alguma coisa.

Já teve um ou outro namorado (ao contrário da mãe que tem um diferente a cada lua). Namorou um vizinho que a traiu depois de quase um ano juntos. Ela não o culpava. Sabia que faltava cor nos instantes, sabia que parecia mais morta do que viva quando estavam na cama.

Não tem memórias da infância, não tem fruta preferida, mas gosta do cheiro que o sol deixa nas suas roupas surradas. É muito bonita, sim. E agora, assim cedo, está no ônibus para mais um dia de trabalho.

Rua das Carambolas, o mesmo número 127 há dois anos. Procura a chave na bolsa, limpa os pés, respira fundo, abre a porta. Começa lavando a louça, prepara o café, arruma a mesa até ouvir os gritos habituais e se dar conta que Dona Lídia acordou e desesperadamente chama por todo mundo. Como se fosse um fantasma, deixa tudo arrumado e, imaginando como acabar com as formigas, dirige-se a outro aposento, para lavar roupas.

Mais fotos de garotas nuas no bolso da calça de Seu Moura. Mais uma vez o sentimento de não saber o que fazer com elas. Desajustar tudo mais ainda mostrando à patroa? Jogar fora e admitir-se cúmplice daquele cotidiano corrupto que entranhava nas paredes? Por alguns segundos pensou em como seria ser fotografada nua.

Encarar o dia como só mais uma segunda-feira. Outro dia morno, enjoado, empedernido. É etéreo tudo aquilo que não tem. Tudo aquilo que não descobriu em si mesma. Deveria tomar remédios como Dona Lídia? Enlouqueceria também? Juntaria todas as desilusões a acreditaria nas pílulas para dormir, acordar e, supostamente, sobreviver?

Era uma segunda-feira como as outras, mas sentiu uma irrupção distinta. Como o nascimento de uma natureza mística, metade Rúbia, metade música. Ou metade rotina, metade desprendimento.

Teve uma súbita vontade de ir ao quarto da Natália, pedir para que fugisse daquela casa, que fosse morar com ela, porque ainda era nova e poderia salvar-se da loucura. Precisava mesmo fazer alguma coisa. Não suportava lutar com suas entranhas ao constatar que a pequena chorava escondida. Podia não saber de moda, podia não se encontrar em si, não se entregar numa paixão. O que não podia era deixar escapar aquele momento.

...

Inebriada, nada fez. O momento passou e a vontade escorreu tornando-se apenas um contraste naquele dia estranho. Por que tanto envolvimento? Não tinha sido contratada apenas para limpar, lavar, cozinhar, não falar e desaparecer? Um calor envolveu-a. Prendeu os longos cabelos em um coque, olhou para os lados e atentou para aquela casa aos seus cuidados. Conhecia todos os aromas das pessoas, que sentia ao passar roupas. Conhecia os remédios no armário do banheiro, as fotos que sugeriam traição, as lágrimas apagadas da filha incompreendida, a preferência da comida, a marca da ração do cachorro, a quantidade de sabão para lavar os tapetes caros... Como se desenlaçar de um dia-a-dia que não lhe pertencia e ao mesmo tempo a envolvia de tal forma que resultou num reconhecimento próprio?

...

Alguém apagou a luz. Ela reconhece aquele cheiro. A porta se fecha. Ele se aproxima, ela não quer. Ou quer. Não poderia porque não gostava disso e não gostava dele e não queria nem pensar nas ininterruptas loucuras de Dona Lídia, caso ela descobrisse. Ele a empurrou para um canto entre a parede e a máquina de lavar que enxaguava a roupas. Fugir daquilo seria fugir de tudo. Não sabia o que seria. Fechou os olhos, ficou na parede, aceitou. Pensou na sua mãe, nos gritos do quarto, em vitrines empoeiradas, nas fotos do Seu Moura, ali na sua frente. Nem sabia como ele não a tinha interceptado antes. Antes ela fugiria, gritaria, morderia. Agora ela deixa, sua, geme, treme, quer. Aquele ambiente a teria mudado? Ele teria percebido?

...

Baque. Sentia-se infinitamente disposta a pedir as contas, a trabalhar em um supermercado, a economizar e comprar uma máquina fotográfica.

...

Na verdade não sentia. Ainda queria salvar Natália, ainda queria ir aos cantos furtivos com o patrão, ainda queria ficar lá e molhar a samambaia. Da falta de vida, fez-se a vontade de tudo ao mesmo tempo.

...

Hiatos. Horas comuns por não saber, já libertada de si, o que percorrer. Pensou em pintar o cabelo. Pensou novamente em tirar fotos sem roupa, mas agora também queria que elas estivessem no bolso de Seu Moura.

...

A pequena passou correndo na cozinha e foi para o quarto. Era o momento de ir até lá e tentar colher uma compreensão, um sorriso. No meio do caminho alguém a segura pelo braço. Mas de novo? Só que agora na cama do próprio, já que Dona Lídia havia saído para umas compras e ele decidira chegar mais tarde ao trabalho para alguns minutos de potência máxima.

Noite. Na cabeça, excertos do dia. Na pele, a inatividade morta, o suor da dúvida, o cheiro do novo. Ainda fechada em si, mas expandida no mundo, era o que sentia. Continuaria no emprego? Absorveria tudo daquela casa ou se procuraria em outras coisas? Estaria ficando parecida com sua mãe? Estaria cada vez mais diferente? Estava decidida: no dia seguinte pagaria alguém para tirar fotos suas com pouca roupa, sem roupa, sem vergonhas nem tremulações.

Olhava-se no espelho, nua, procurando os defeitos de seu corpo. Seios talvez pequenos demais, mas ela concluía gostar assim, e os segurava levemente como que para ter certeza que aquela beleza era sua. Via sua pele muito branca, mirava-se de lado, procurava curvas, formas que ainda não conhecia, pensava nas fotos e perguntava-se como que agora, dentro de si, cabia tanta coisa.

Lembrou-se de Natália, imaginou Seu Moura e Dona Lídia na cama. Ela louca, ele também louco, só que por outra coisa. Aí acabavam não fazendo nada. E também aquela casa não significava nada. Reflexo dos dias doidos, filhos não planejados, carinho não dado, comida sem gosto, roupas úmidas, arrependimentos, coisas para organizar, coisas para amar, animal de estimação esquecido, dinheiro esbanjado, colégio particular etc. Isso só para simplificar. Lutava consigo, pensava coisas aleatórias, queria comprar lingeries e uma barra de chocolate. A roupa por fora não importava, só importava a que seria vista por poucos.

A mãe bate à porta. Filha, você chegou tão diferente, aconteceu alguma coisa? Não, mãe. Eu só me confundi. E dormiu.

Sonhou ser fotografada nua e em preto e branco. As fotos estavam nos outdoors da cidade. Todos viam seus seios, seus pêlos, o contraste habitual de sua pele. Homens e mulheres desejavam-na, queriam fazer fila, mordê-la. Então, em meio à multidão, aparecia Natália estendendo a mão e pedindo baixinho que ela fosse sua mãe.

Rúbia acordou ainda atordoada, olha o relógio, veste-se, prende os cabelos. Vai à parada e sente-se incapaz de entrar no ônibus de sempre. Senta no meio-fio e espera. Como se Natália fosse buscá-la e fazê-la salvar-se de si mesma.

Um comentário:

Anônimo disse...

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